Raquel Schefer
A minha relação com o cinema amador começou na primeira infância, quando confrontada com os filmes de família que o meu avô, antigo administrador colonial, filmou em Moçambique entre as décadas de 50 e 70. Tenho ainda lembranças vívidas daquelas sessões de visionamento colectivo: recordo-me, sentada no chão, a sala semi-obscura, embalada pelo som do projector, diante de imagens que faziam sensível um espaço-tempo outro. As projecções familiares tinham uma dimensão encantatória, ligada à capacidade do cinema de restaurar modos perceptivos e cognitivos historicamente erradicados pela racionalidade moderna. Contudo, já então experienciava uma malaise ao ver aquelas imagens, que hoje re-interpreto à luz das relações de dominação e dos processos de ordenação do espaço cinematográfico veiculados e concretizados pelo olhar colonial. Pressentia já também uma hierarquia de imagens, formatos e sistemas de representação e de exibição: percebia que aqueles arquivos não pertenciam à mesma ordem que as imagens que via na televisão ou nas salas de cinema.
Ao escrever estas linhas, décadas depois, dou-me conta de que essa experiência fundadora de confronto com arquivos familiares coloniais moldou decisivamente a minha vida, tanto em termos pessoais, quanto profissionais. Em certo sentido, fui olhada por aquelas imagens. Desde muito cedo, tive consciência da linha de continuidade — ou, mais precisamente, do “pli” — entre o público e o privado, da dimensão intrinsecamente política da intimidade e da importância de um olhar situado. Espectralizando-me durante longos anos, as imagens que vi na infância levaram-me também a tentar assumir e re-negociar a minha herança colonial através do cinema, mais concretamente através da realização de Avó (Muidumbe) e de Nshajo (O Jogo), filmes que, situando-se entre o re-emprego e a re-significação de arquivos e a reconstituição, se aproximam, eles próprios, de uma prática amadora do cinema ou de um “cinema pobre”, desprendido da contingência técnica. Enfim, em termos de investigação, além de ter dedicado a minha tese de doutoramento ao estudo do cinema revolucionário moçambicano, as práticas de cinema “menor”, não-hegemónico e amador são um dos meus principais campos de pesquisa.
A separação entre o cinema “profissional” e o cinema “amador” resulta do modelo de divisões binárias sobre o qual se fundam o sistema capitalista e a modernidade “ocidental” hegemónica. A história do cinema é eloquente quanto aos pressupostos ideológicos, políticos, culturais e epistémicos dessa separação. Le Repas de bébé (1895), de Louis Lumière, bem como diferentes exemplos do cinema dos anos 10 e 20 do século XX, mostram a que ponto o “profissional” e o “amador” eram ainda então indestrinçáveis. A operação dessa separação, consolidada nas décadas seguintes, prende-se, por um lado, com a sacralização e a industrialização do cinema, associada à deslocação, para o campo cinematográfico, de categorias ideológicas modernas — e modernistas — como as de “autor”, “obra” e “originalidade”, e, por outro, com o princípio de especialização das funções técnicas que estrutura o sistema capitalista. Como investigadora, interesso-me, por conseguinte, por uma história intersticial do cinema, pela história de filmes e de modos de produção que procuram romper a barreira das competências — e a própria hierarquia piramidal da produção cinematográfica. As filmografias de Chantal Akerman, Glauber Rocha e Robert Kramer são-me particularmente caras não só pela maneira como se situam num espaço intersticial entre o público e o privado e afirmam uma política da intimidade, como também pela expressão formal que nelas adquire a adopção de modos de produção que procuram suturar as hierarquias da representação cinematográfica. Desde a minha tese de mestrado, dedicada ao auto-retrato cinematográfico, tenho vindo a trabalhar a noção de “auto-representação”, complementada, mais recentemente, com o conceito de “co-representação”. Essas duas noções levaram-me a examinar um corpus outro, estendendo-se do sistema de representação fundado num princípio — ainda que ambivalente — de comunitarismo do Colectivo Ogawa Pro até filmografias contemporâneas que, como a de Ana Vaz, buscam redefinir a relação hierarquizada entre o sujeito e o objecto de representação e mitigar a perspectiva antropocêntrica, passando pelas experiências de cinema ameríndio, que formalizam cosmovisões extra-“ocidentais” e reconstroem “comuns” sociais e cinematográficos através dos seus modos de produção e de distribuição.
Num período histórico em que, como na década de 30, nos deparamos com a ascensão do fascismo e do seu princípio de estetização da política, esse conjunto de práticas cinematográficas, passadas e presentes, afigura-se-me como uma das instâncias capazes de re-politizar e de acentuar a complexidade do campo da representação e da esfera social. Paralelamente, se a história e a memória do paradigma de emancipação do século XX, de que o cinema faz parte, foram erradicadas quase completamente do campo hermenêutico e do espaço visual (ou são desterritorializadas esteticamente), tais práticas (e os seus arquivos) são poderosos instrumentos epistémicos e políticos que oferecem contra-perspectivas históricas susceptíveis de operar uma transformação do presente.
Raquel Schefer